quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Um francês no brasil




Nascido em Paris e formado em Filosofia, Olivier Anquier acabou trilhando um caminho completamente diferente. Radicado no Brasil há bem mais de duas décadas, iniciou aqui uma bem-sucedida carreira na área de panificação, ao renovar e ampliar a variedade de pães na mesa dos brasileiros.

“A vontade de fazer com prazer, a paixão que você coloca dentro da sua profissão talvez seja a chave número um do reconhecimento e do sucesso” — destaca o boulanger franco-brasileiro, que está comemorando os primeiros dez anos de sua padaria, inaugurada em 1995. “O segredo do padeiro é a manipulação, o jeito de cuidar, de tratar a massa do pão desejado”, diz. Hoje, Olivier abastece cerca de 40 lojas da rede Pão de Açúcar, por meio de uma parceria.

Olivier passou a trilhar o caminho da panificação após 15 anos de moradia no Brasil, ao observar as características locais de consumo, que se limitava ao pãozinho francês, com exceção de alguns micro-nichos regionais, como os da comunidade italiana em São Paulo, e em algumas partes do Nordeste com pães específicos consumidos apenas naquelas comunidades.

Para ele, a área de pães era bastante monótona, com o domínio quase absoluto do pãozinho francês — que, apesar disso, confessa adorar. “Mas para quem gosta, como eu, de diferenciar o dia a dia com vários tipos de pães, faltava alguém no Brasil para explorar melhor a área de panificação”, relembra Olivier. Essa ausência de opções acabou por convencê-lo a “levantar a bandeira familiar” e fazer o que ele, de certa maneira, esperava que alguém fizesse para diversificar a oferta de pães, pelo menos nos grandes centros do País.

“Sou muito curioso, observador e escolhi viver num país diferente do meu, onde acabei me adaptando à cultura local, buscando detectar algo que faltava nessa cultura e que eu tinha capacidade para oferecer, para somar”, explica.

Lição transmitida pelos pais

A gastronomia sempre fez parte da vida desse parisiense-quase-brasileiro. “É uma intimidade que eu adquiri desde pequeno. Meu pai era médico e adorava cozinhar, comer bem e toda a filosofia que envolve o ato de comer, a cordialidade, o prazer e a emoção de oferecer, de preparar o alimento e tudo o que envolve o momento da mesa. Uma sensação de reconforto, de paz. É uma coisa que meus pais sempre valorizaram, que fez a gente entender, apreciar e dar continuidade ao longo da nossa vida a esse momento”, relembra, acrescentando que o ato de comer está muito mais ligado ao aspecto intelectual, à filosofia, ao comportamento. “Vai muito além da comida, muito além. Aos domingos, ele reunia a família em volta da mesa, gerando momentos memoráveis, grandes conversas e um grande contato, uma abertura de coração por meio do ato de comer”.

A vocação despertada pela área de panificação foi transmitida pela mãe. “Faço parte da terceira geração de padeiros da família, pelo lado da minha mãe, que é padeira até hoje na Austrália. O primeiro padeiro de minha família foi o meu tio-avô do lado da minha mãe”, detalha.

A padaria, do projeto ao trabalho

Em 1995, quando começou a formatar seu projeto e pensar em sua equipe de ajudantes, Olivier ouviu muitos comentários de que no Brasil não havia matéria-prima de qualidade, nem mão-de-obra adequada para o que queria fazer, nem mesmo consumidores em número suficiente para tornar o negócio viável.

Eu derrubei todos esses posicionamentos”, lembra Olivier, afirmando que na época não havia tantas escolas formadoras de profissionais como tem hoje. “Nesse País com 170 milhões de pessoas, temos muitos talentos querendo uma oportunidade, querendo aprender para se revelar. E o segredo é dar o tempo, o respeito, a paciência de passar para o outro o seu conhecimento”.

Foi um trabalho muito difícil, muito longo — reconhece Olivier — por ele ser o único dentro daquela estrutura inicial a conhecer todos os macetes, todas as receitas e o modo de fazer de cada produto. “Além dos 25 tipos de pães, havia a parte dos folhados, rocamboles, brioches, entre outras variedades, e a parte de confeitaria francesa, com tortinhas rústicas à base de frutas secas”, enumera, lembrando que a primeira equipe a auxiliá-lo na padaria e confeitaria foi composta pelos próprios ajudantes da construção.

“Praticamente de um dia para o outro, meus ajudantes passaram do saco de cimento para o saco de farinha”, lembra. A maior parte dessa equipe inicial permanece trabalhando com Olivier, acrescida de alguns novos integrantes ao longo do tempo.

“Atualmente, a estrutura profissional que tenho é formada basicamente pela equipe que formei há dez anos, com pessoas humildes, que hoje têm uma profissão, um status, e o orgulho de estar nesse projeto desde o início”, salienta o boulanger. “São pessoas que mantêm uma grande fidelidade à empresa”.

Olivier revela que sempre busca trabalhar com pessoal jovem. Sua equipe de fabricação tem uma média de 25 anos de idade, e muitos de seus integrantes começaram na empresa com apenas 16 anos.

Sua experiência com estagiários de nível universitário não foi muito estimulante. “Não quero mais, prefiro dar oportunidade para gente humilde”, dispara, convicto. Para ele, o primeiro contato é fundamental, por mais injusto que possa parecer, pelo fato de envolver a observação do candidato nos aspectos de comportamento, postura, atenção, curiosidade e disposição para o trabalho, entre outros itens. “Na vida, tudo se baseia na observação do espaço, das pessoas, de tudo, assim pode-se detectar se uma pessoa tem capacidade ou não para assumir o trabalho”. Olivier acrescenta que sempre adotou esse sistema empírico, básico, antigo e funcional.

O pão preferido

“É o mais simples, feito com a mistura de água, farinha, fermento e sal, somado ao segredo de manipular a massa para transformá-la em pão, que é uma magia”. Para ele, a diferença de um pão para outro vai resultar basicamente na porcentagem da mistura das farinhas. Outros tipos de pães que ele também aprecia podem levar açúcar, levar gordura, nozes, uva passa, tudo que seja possível acrescentar à receita.

Quanto aos pães brasileiros, Olivier aponta um que “tem a identidade do Brasil e vem de Minas Gerais” — o pão de queijo. “Feito com uma farinha que não é de trigo e com ingredientes próprios do Brasil, é uma coisa absolutamente maravilhosa”, elogia. Outros pães, como o pão de batata, de fubá, não o surpreenderam tanto por terem características encontradas em outras partes do mundo, exatamente pelo fato de o Brasil ser resultado de uma mistura de povos. “O pão de queijo é brasileiro por excelência”, conclui.

Padaria ou confeitaria?

“Eu sou padeiro e faço uma confeitaria de padeiro”, informa Olivier, ressaltando que o ramo de confeitaria é algo bem diferente da panificação, embora no Brasil exista essa mistura, na qual o padeiro também acaba sendo confeiteiro. “A confeitaria utiliza ovos, cremes, produtos muito sensíveis, frágeis, e a base que dá vida à massa do pão é o fermento”, salienta, acrescentando que num ambiente em que se utiliza fermento, tudo fica afetado, pois o fermento evapora durante o processo de fermentação da massa do pão. “Por isso é muito difícil conciliar essas duas atividades. São profissões diferentes, com aprendizado diferente, com macetes diferentes”.

O mestre em pães explica que a confeitaria de padeiro é relativamente mais simples, pois utiliza basicamente uma mistura de água, farinha, um pouco de gordura para fazer a massa de torta, frutas da temporada, ingredientes simples, rústicos, sem a fragilidade daqueles cremes de confeiteiro para a elaboração artística das receitas.

Chef ou padeiro?

“Eu não sou chef, e se me chamarem assim será uma ofensa à profissão” — dispara Olivier, ressaltando que para se atingir o título de chef é preciso estudar muito, por ser uma profissão muito difícil. “Para se tornar chef, é preciso passar por todo um estágio acadêmico, pelo qual eu não passei. Eu sou um bom cozinheiro, tenho muita intimidade com a cozinha e sou apaixonado por ela e ponto. Faço a cozinha de papai, mamãe, vovó com o talento que eu acredito ter, pelo que eu ouço e percebo quando falam de mim, pelo retorno que isso me traz em termos de satisfação e prazer que as pessoas têm. Daí a ser chamado de chef tem um mundo...”

Por conta de sua habilidade profissional e experiência empresarial, ele faz regularmente palestras para estudantes e para o público interessado, geralmente em teatros e auditórios, ligados a movimentos culturais e eventos diversos.

Alguns conselhos e reflexões pessoais

— “Recomendo a todos os jovens que desejam entrar no mundo da gastronomia que procurem enxergar direitinho onde estão colocando as mãos e a sua habilidade”

— “Não há glamour, é um trabalho pesadérrimo, com muito trampo”

— “Se você quiser passar três anos enfornado em um atelier de fabricação de pães para, de repente, conseguir virar uma pessoa reconhecida, terá que trabalhar que nem um louco, terá que sofrer muito”

— “O reconhecimento não acontece de um dia para o outro, pela operação do Espírito Santo ou por um diploma na área”

— “A panificação é milenar e evoluiu muito pouco durante todo esse tempo. O pão é algo muito singelo, que não aceita a modernidade”

— “O pão hoje em dia é apresentado como o vilão da nossa alimentação, quando ele salvou não sei quantas vezes a humanidade da fome. A história do pão e do homem está tão interligada, tão unida, que é quase uma só”

— “O pão não aceita a falta de sinceridade. O pão é feito de massa viva, que necessita de respeito, de cuidados específicos, como todo ser vivo”

— “O pão não suporta manufatura, industrialização. O tempo vai mostrar, como já está mostrando, que o pão vai voltar a ser o rei da alimentação, que sempre foi”

Fonte: www.mesapronta.com.br

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